"Cara Júlia Boghoricin Mattos,
Fiz um passeio pelo mercado de peixe de Niterói na tarde de ontem. Fiquei um pouco confuso, entretanto, porque não vi peixes, mas sim seres humanos deitados, não mortos, apenas adoecidos. Percebi que os problemas eram pequenos: alguns haviam feito plástica nos olhos, outros gostavam de ficar lá, deitados, enquanto outros desenvolveram uma estranha reação que tomava conta do organismo e ninguém sabia dizer a origem - eu apenas ouvia uns gritos, acho que de dor, que poucos davam atenção, aliás, ninguém.
Sabe aquelas portas que abrem e fecham apenas com um leve toque? Pois é, lá eram assim, os funcionários vinham buscar os corpos vivos para serem devidamente limpos e preparados para o abate, e consequentemente para a venda, enquanto as duas portas batiam uma na outra provocando a comoção popular - quanto mais barulho na multidão, maior a excitação. A exposição deles era proposital, pois era motivo de sorrisos entre os visitantes e transeuntes. Uns mais abusados chegavam a cutucar os olhos e ouvidos para ver se estavam frescos, e quando solicitavam a compra tascavam-lhes um tapa na nádega direita para deixá-la levemente avermelhado o que possibilitaria mais tarde o reconhecimento do produto que estava levando para as crianças comerem.
Como qualquer feira livre, o barulho era peculiar. Tinhamos os esbaforidos mercadores tentando seduzir os clientes pela altura elevada da voz. Eles ainda faziam uso das cornetas que vemos no Maracanã em dia de Vasco e Flamengo, além de apitos e aparelhos de som tocando Calipso e Serginho. Diante da festa, encontrei a barraca que era considerada o maior sucesso da feira. A dona era uma senhora que sempre tinha dor de garganta e febre, tanto é que chamavam-na "Quentinha". Sei que parece ter duplo sentido, mas para eles o apelido era apenas em razão da doença crônica. Ela conversava com os clientes e vendia os produtos como se estivesse no quintal de casa: sentava nos corpos dos produtos, aproximava-se deles como se a garganta não tivesse pus, e ainda apertava a mão dos produtos como se estivessem saudáveis, saculejando até a espinha deles. Num dos momentos que eu observava a atuação da senhora, ela chegou ao ponto de sentar em sua cadeira e esticar as pernas em cima do balcão onde eram oferecidos os peixes. Neste momento todos iam ao delírio, aplaudiam e batiam palmas como se fosse o presidente da república em discurso ou o Alexandre Pires abraçando o Bush.
Ainda tinhamos os funcionários de menor importância, ou seja, aqueles que eram responsáveis apenas pelo transporte dos corpos-peixes para a sala de limpeza e abate. Sua função era subalterna, mas o show que promoviam no trânsito dos corpos era sensacional. As macas chocavam-se, o barulho aumentava e os corpos às vezes caiam estatelados no chão. Conversavam entre si aos berros, uns chamando os outros pelos apelidos de criança e escarnecendo os defeitos e problemas físicos de uma canto a outro da peixaria. Cheguei a ver um deles, um tanto afeminado, amontoar dois caixotes e começar a gritar para um de seus companheiros: "Amigooooooooooooo. Amigoooooooooooooo. Esse aqui fez número dois nas calças! Eu estou perdidoooooo! Me ajudaaaaaaaaaaaa! Não posso ver as coisas dele e preciso limpar rapidinho, já até foi vendido".
Depois do clímax, resolvi sair um pouco para beber água, pois lá dentro nem banheiro há.
Bem, essa foi a minha estada no Hospital Santa Cruz ontem, com a minha tia. Cheguei mesmo a achar que poderia comprar um peixe lá dentro. E também que o INSS dos ricos era ali."
Beijos,
Antônio José da Cunha Boghoricin Mattos (vulgo: Fred Pagnuzzi)
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