"Desta vez, radicalizei um pouco mais do que o costume. Trabalhei numa região de campo minado. Tudo destruído pela guerra. Marcas de bala, tiros de canhão, fogo. Na beira da estrada ainda há tanques de guerra incendiados, ônibus queimados. Uma tristeza! Trabalhei em aldeias perdidas no meio de nada e a caminho do nada. Andei por aldeias à beira mar, onde tudo seria lindo não fosse o medo das minas. Não se pode caminhar nas praias, subir montanhas, andar pelas lindas trilhas. Nosso carro tinha um tapete antiminas, e tínhamos a escolta de soldados dos projetos de desminagem das Nações Unidas.
Contei histórias em 24 escolas, umas bem distantes das outras. Às vezes viajava um dia inteiro para chegar lá bem longe, no final da província, numa escolinha de uma última aldeia da distante província da Kuanza Sul. E em quase todas as escolas, depois das apresentações, nosso carro era seguido muitos quilômetros por aquelas crianças que vinham sorrindo, cantando e acenando.
Nem sei o que dizer sobre tudo o que se sente num momento assim. O que mais dói é saber que mesmo ali com você, sorrindo e sendo felizes por alguns instantes, a todos eles está reservado um futuro incerto. E que todos sentem fome e que muitos deles, ou a maioria, ou todos, não comeram nada até aquela hora do dia.
Então, eu fico pensando que leitura e hora do conto não matam a fome do corpo e que seus benefícios são a longo prazo. E que um dia sem comer é um prazo muito longo.
Sempre saio cheio de dúvidas e mágoas no coração. Não dá para não ter revolta por viver num mundo em que se permite que milhares de crianças pelo mundo afora vivam em máxima situação de risco, abandono e desespero em seu tão pouco existir."
Maurício Leite, responsável pelo programa Malas de Leitura, em email para Marina Colasanti.
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